Uma operação da Polícia Federal cumpriu mandados de prisão preventiva, busca e apreensão contra quatro militares da ativa e um da reserva das Forças Armadas — além de um policial federal –, suspeitos de participar de um plano para executar o presidente Lula (PT), o vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB) e o ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal) e consumar um golpe de Estado que manteria Jair Bolsonaro (PL) no poder após as eleições de 2022.
O papel de integrantes das Forças Especiais do Exército (os “kids pretos”, treinados em operações de contra-inteligência, insurreição e guerrilha) e o planejamento operacional descritos pelos policiais demonstraram a centralidade das Forças Armadas para a tentativa de impedir a posse de Lula.
Para pesquisadoras das instituições ouvidas pelo site IstoÉ, a Operação Contragolpe compõe com a Tempus Veritatis, deflagrada em fevereiro, um cenário inédito de responsabilização de oficiais e contribui para uma revisão da configuração atual das corporações, mas também coloca em xeque a postura conciliatória do governo federal na relação com os fardados.
Para entender o impacto das apurações e prisões da PF sobre as Forças Armadas e sua relação com o poder, o site IstoÉ entrevistou:
— Adriana Aparecida Marques, professora de defesa e gestão estratégica da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e diretora da Associação Brasileira de Estudos da Defesa
— Mariana Janot, pesquisadora do grupo de estudos de defesa e segurança internacional da Unesp (Universidade Estadual Paulista) e do laboratório de análise em segurança internacional e tecnologias de monitoramento da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo)
IstoÉ Duas operações policiais, separadas por nove meses, investigaram e puniram militares de alta patente do Exército. Em termos históricos, as Forças Armadas já foram afetadas por um processo dessa dimensão?
Adriana Aparecida Marques Desde a redemocratização, não houve caso de militares de alta patente investigados ou indiciados pela Justiça [até 2024]. Acho que esse processo é fundamental para que haja, de fato, um enquadramento mais adequado dos militares ao regime democrático.
Neste período histórico, muitas ações e comportamentos irregulares de oficiais foram normalizados dentro de uma perspectiva de que acomodar era melhor do que enfrentar os desafios à ordem democrática. Os Três Poderes da República foram lenientes com atitudes que não deveriam ser contemporizadas do oficialato.
Um general da ativa assinou uma carta contestando os resultados da Comissão Nacional da Verdade, um comandante do Exército pressionou o Supremo para que não tomasse uma determinada posição no julgamento do habeas corpus de um então ex-presidente [Lula], e tudo isso foi contemporizado. Como consequência, esses senhores se sentiram confortáveis para tramar um plano de homicídio do presidente eleito. Esse inquérito é pedagógico do que é ou não aceitável para a conduta de oficiais das Forças Armadas em um regime democrático.
Mariana Janot A sujeição dos militares a esse tipo de operação é um efeito da maior exposição deles, que foi uma escolha das Forças Armadas ao entrar efetivamente na política, no aparato administrativo, desde 2018.
A principal novidade [da Contragolpe] é a maior incidência de operações da Polícia Federal, que é uma dinâmica a se atentar no campo da segurança no Brasil, porque representa um crescimento da PF enquanto instituição. As Forças sempre se importaram muito com essa imagem institucional e, de alguma maneira, enfrentam uma ‘inversão’, em que a própria Polícia Federal passa a ocupar esse espaço de instituição respeitada da segurança.
IstoÉ Qual impacto as novas revelações de participações de militares em uma suposta tentativa de golpe têm sobre as Forças Armadas enquanto instituição? Pode alterar a relação entre a corporação e o poder no país?
Adriana Aparecida Marques Espero que haja. Havendo responsabilização de militares por essa tentativa, há margem para que os militares de fato se afastem da política brasileira, a partir de cobranças da sociedade civil, da imprensa e, embora seja difícil na atual composição do Congresso, de uma maior mobilização dos parlamentares em fiscalizar as Forças Armadas.
É muito perturbador ver que há desde um general da reserva até um major da ativa das Forças Especiais do Exército envolvidos em uma trama golpista. Se isso acontece à margem do Ministério da Defesa, de comissões [de Defesa] na Câmara e no Senado, é preciso haver um reposicionamento. Desde que a Tempus Veritatis foi deflagrada, há quase um ano, qual atitude o Ministério da Defesa e as comissões parlamentares tomaram em relação aos militares da ativa [investigados nela]? Pelo contrário, parte deles manteve sua atuação.
Mariana Janot O governo Lula 3 adota uma postura de conciliação [com as Forças Armadas]. Nada indica, diante disso, que haverá alterações mais profundas na relação entre os militares e o poder. Até agora, o que se viu foi uma sucessão de revelação de casos e, em reação, o governo sinaliza que está ‘tudo certo’.
A gravidade das novas revelações, contudo, dá margem à expectativa de se rever um aspecto específico, que é o funcionamento das Forças Especiais, em cujas operações vigora muito a interpretação do próprio Exército do que é a ordem interna a ser garantida.
Fora a inteligência, espionagem e vigilância [das FE], há essa noção de que esses militares podem dizer o que são a ordem e a estabilidade doméstica a serem preservadas. Esse tipo de operação precisa ser revista e, para além da administração política [das Forças Armadas], o aprofundamento e a revisão do que significa manter as Forças Especiais pode ser uma medida muito importante.
IstoÉ Em um caso como este, qual é o papel da Justiça Militar? Ela não deveria agir também para punir as ilicitudes cometidas por seus servidores?
Adriana Aparecida Marques Este é um caso em que os militares são investigados por crimes comuns, não crimes militares, o que está além do papel da Justiça Militar.
Uma vez que essas sentenças forem concluídas e, se for o caso, os militares forem condenados por atentado ao Estado democrático de direito, eles serão considerados indignos do oficialato, que é uma atribuição da Justiça Militar.