O que pode estar por trás dos ataques no Rio Grande do Norte
Pelo segundo dia seguido, criminosos conseguiram ataques em cidades do Rio Grande do Norte.
Ao menos seis municípios registraram cenas de violência na quarta-feira (15/3), segundo levantamento do portal G1, e o total chega a 24 cidades desde que as ações criminosas ocorreram, na madrugada de terça-feira (14/3).
O governo do Estado afirmou que havia sido alertado sobre a possibilidade de ataques e que tomavam medidas preventivas. Mas isso não impede tiros e incêndios em prédios públicos, comércios e veículos.
Um suspeito integrar a facção que seria responsável pelos ataques e liderar os ataques foi morto em confronto com a polícia em João Pessoa, na Paraíba.
Foram presas 30 pessoas até agora. Uma pessoa morreu em confronto com a polícia e duas ficaram feridas nos ataques.
Também foram compreendidas armas, munições, capturas explosivos, veículos, dinheiro e drogas.
Parte dos integrantes da Força Nacional enviou pelo governo federal um pedido da governadora Fátima Bezerra (PT) para fortalecer a segurança chegou na quarta-feira.
A expectativa é que o contingente de 220 agentes esteja completo até quinta-feira (16/3), segundo o ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino (PSB).
"Podemos ampliar até o quantitativo que se configura necessário", afirmou Dino.
O ministro também determinou que a Polícia Rodoviária Federal reforce o patrulhamento no Estado.
"Outras ações estão sendo providenciadas e posteriormente serão anunciadas", disse Dino em suas redes sociais.
Bezerra, que se reuniu com Dino e com o secretário nacional de Segurança Pública, Tadeu Alencar, na terça-feira, afirmou que os ataques são "inaceitáveis" e "repugnantes".
"Quero declarar todo o nosso repúdio aos inaceitáveis episódios de violência ocorridos hoje no nosso Estado e declarar que todo o trabalho está sendo feito para que os criminosos sejam presos, julgados e punidos com todo o rigor da lei", disse.

CRÉDITO,ABR
A governadora Fátima Bezerra disse que ataques são 'inaceitáveis' e 'repugnantes'
OS MOTIVOS DOS ATAQUES
A Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social (Sesed) do Rio Grande do Norte afirmou que os ataques foram uma retaliação a ações de combate ao tráfico e ao crime organizado.
"Acreditamos que, com ações policiais superiores, há 15 dias, onde houve um enfrentamento da segurança pública em relação a infratores, onde foi apreendida grande quantidade de drogas e armas, isso inquietou a delinquência a enfrentar o sistema de segurança pública", disse o secretário de Segurança Pública e Defesa Social, Francisco Araújo, na terça-feira.
Araújo afirmou depois ao portal UOL que morte de lideranças de organizações criminosas em confronto com a polícia poderia ter motivado os ataques.
No entanto, uma convocação - ou “salve”, no jargão criminoso - que circula pelo WhatsApp, supostamente de autoria da facção Sindicato do Crime, afirma que os ataques seriam uma resposta às condições do sistema prisional do Rio Grande do Norte, descrita como " degradantes".
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil concordam que o sistema prisional do Estado é um dos fatores que podem estar por trás das ações criminosas.
“Dizer que o que aconteceu é só uma retaliação é invisibilizar um problema maior”, diz a antropóloga Juliana Melo, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e pesquisadora dos sistemas prisional e da área de segurança pública.
“Quanto pior a prisão é, mais violenta é a sociedade. Tudo o que acontece dentro do sistema prisional tem consequências para o que acontece do lado de fora. do que outros lugares do Brasil.”
O cientista criminal Ivenio Hermes, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e do Observatório da Violência da UFRJ, destaca que foram tomadas algumas medidas tomadas ao longo dos últimos anos para que o poder público reassumisse o controle do sistema prisional do Estado.
“As ordens emanadas de dentro das prisões chegamvam com facilidade o lado de fora, onde até os criminosos agiam conforme essas orientações. Houve então desde um cerceamento dessas informações, com maior controle de portarias, investimentos em raio-x e segurança, contratações de reservas e investimentos em treinamento, separação das facções”, diz Hermes.
No entanto, o pesquisador avaliou que não houve um esforço na mesma medida para garantir melhores condições aos detentos.
“Mesmo com as melhorias para hermetização do sistema prisional, as melhorias do fator humano ainda estão aquém, então, as demandas por estas melhorias podem estar entre os fatores que causaram essa situação.”
A Sesed foi procurada pela BBC News Brasil para comentar o assunto, mas não respondeu até a publicação desta reportagem.
VIOLAÇÕES DE DIREITOS
Juliana Melo diz que a reforma do sistema prisional do Estado não impede que os direitos dos presos continuem a ser violados.
"Há superlotação, agressões e tortura sistemáticas, privação de alimentos e de remédios, facções rivais continuam nos mesmos pavilhões, o que gera um grande pavor nas famílias dos presos... O fato é que as prisões do Rio Grande do Norte são verdadeiros campos de concentração ."
Em visitas a cinco prisões do Estado, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, órgão ligado ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, encontrou evidências de torturas físicas e psicológicas, falta de alimentação, desassistência em saúde e superlotação, entre outras violações dos direitos dos presosm, conforme noticiado pelo G1.
Em declarações à imprensa na noite de terça-feira e na quarta-feira, o secretário Francisco Araújo falou pela primeira vez sobre a convocação para os ataques e mostrou que as reclamações de detentos das condições do sistema prisional são uma das "hipóteses" para o motivo dos ataques.
"Uma liderança de uma organização criminosa foi presa, e ele e outros dizem através de mensagens de WhatsApp que o Estado do Rio Grande do Norte é muito duro no controle do sistema prisional, que eles precisam viver em um ambiente mais confortável", afirmou ao UOL.
Araújo disse que os presos reivindicam "televisão, sistema de iluminação, visita íntima, coisa que o sistema prisional não está atendendo porque está cumprindo a lei de execução penal", afirmou o secretário, de acordo com o G1.
Araújo afirmou ao UOL que o Estado "não tem condições" no momento de promover as melhorias reivindicadas pelos detentos e acrescentou haver indícios de que as ordens para os ataques partiram de dentro das prisões.
"Nós não iremos em hipótese alguma mudar as regras e fragilizar o sistema prisional. A regra continua dura e vai ser mais dura ainda. Inclusive, agora, foram suspensas todas as visitas."
Araújo afirmou que o Estado tem o dever de garantir todos os direitos dos presos. "Mas, quando há ações como essa que está conectada agora, todos esses direitos são cada vez mais reduzidos e privados."
HISTÓRICO DE VIOLÊNCIA

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Facções criminosas se instalaram no RN nas últimas décadas
O Rio Grande do Norte é um dos Estados mais violentos do Brasil, segundo o Atlas da Violência, um relatório anual produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada com a colaboração da FBSP.
Em 2019, de acordo com os dados mais recentes, o Rio Grande do Norte tinha a 2ª maior taxa de mortes por armas de fogo do país, a 7ª maior de homicídios e a 10ª de mortes violentas por causas indeterminadas.
"O Rio Grande do Norte teve historicamente pouco investimento em segurança pública, ficou abandonado por muitos anos. Não tinha investimento em material humano, em capacitação, em estudos para combater a criminalidade de forma inteligente, e, onde não tem isso, a criminalidade se expande", diz Ivenio Hermes.
"Houve um esforço das forças de segurança desde 2018, mas ainda está aquém. A retomada recente do investimento é como tentar frear um trem em alta eficiência e manter na outra direção."
Nas últimas duas décadas, facções do crime organizadas se instalaram e prosperaram no Estado, segundo os investigadores ouvidos pela BBC News Brasil.
"Houve um movimento de expansão do PCC [Primeiro Comando da Capital] pelo Brasil, almejando o controle do cultivo e da distribuição de drogas, e o Nordeste é muito importante, porque é um ponto de escoamento, em especial o litoral do Rio Grande do Norte , que é o ponto mais próximo da Europa, então, é importante estar aqui", diz Juliana Melo.
O PCC venceu nos últimos dez anos a competição do Sindicato do Crime, que surgiu como uma dissidência da facção paulista e, hoje, é a principal organização criminosa do Estado.
"Eles foram assumindo o protagonismo lentamente, mas de forma assertiva, buscando e surpreendendo as fraquezas dos seus rivais, e foram muito proativos em se confinamento pelo Estado", afirma Hermes.
"Hoje, eles têm uma presença grande nos maiores municípios, especialmente na região metropolitana de Natal e no oeste do Estado, que é onde ocorreram estes últimos ataques."
Juliana Melo afirma que a facção divulgou outros salves mais recentemente, que não teve repercussão de agora, e avalia que as autoridades do Rio Grande do Norte talvez não tenham dado atenção à última convocação.
"Podem ter pensado que eles não iam dar conta de fazer o que estavam prometendo, porque estariam enfraquecidos depois que várias lideranças foram presas e por causa da disputa com o PCC", diz a pesquisadora.
"Mas, agora, eles conseguiram se organizar um pouco melhor. Isso mostra que eles não foram eliminados, estão atuantes e são uma força violenta, infelizmente."
Hermes afirma os ataques recentes mostram que houve uma falha nas medidas de prevenção a ações criminosas.
"Dizer que a culpa é das autoridades do Estado seria forte demais, mas, com certeza, os responsáveis pela segurança, ou seja, a secretaria e seus sistemas de inteligência, falharam", diz o pesquisador.
Esta não é a primeira vez, afirma Juliana Melo. Ela dá como exemplo o massacre de Alcaçuz, como ficou conhecida a maior rebelião do sistema prisional do Estado, ocorrida em 2017.
"As famílias dos presos mandaram cartas dizendo que ia acontecer e foram ignorados. O sistema de segurança pública falhou o tempo todo. Enquanto não melhorar a situação nas cadeias, não vai conseguir resolver esse problema, que é cíclico."