O que muda se o voto distrital misto for adotado no Brasil
O presidente da Câmara, Hugo Motta, articula a retomada do projeto que institui o voto distrital misto no Brasil a partir de 2030, defendendo que a mudança ajudaria a reduzir a influência do crime organizado nas eleições. O modelo combina o atual sistema proporcional com a escolha de parte dos parlamentares por distritos territoriais, aproximando eleitores e representantes. Especialistas consultados apontam possíveis vantagens, como maior identificação entre eleitor e eleito, mas destacam riscos como maior personalização da política, enfraquecimento dos partidos e complexidade maior das regras, sem evidências claras de melhora na qualidade democrática.
O presidente da Câmara dos Deputados, Hugo Motta (Republicanos), tem articulado a tramitação de um projeto que busca alterar os padrões de escolha de deputados e vereadores no Brasil por meio da implementação do voto distrital misto a partir das eleições de 2030.
A mudança, segundo Motta, busca impedir o crime organizado de financiar campanhas e alcançar representação legislativa. Mas o texto não é novidade: sob autoria do então senador José Serra (PSDB), a ideia do voto distrital está estacionada na Casa desde 2017 e voltou à pauta após a megaoperação policial contra o Comando Vermelho, no Rio de Janeiro, deixar 121 mortos no final de outubro. Mais letal da história do estado, a ofensiva intensificou o debate sobre as políticas de combate às facções.
Três dias depois da ação policial, Motta defendeu o projeto e sinalizou que irá trabalhar na mobilização da agenda dentro do Congresso. “Vamos enfrentar a discussão sobre a mudança do sistema eleitoral do nosso país, principalmente para as eleições proporcionais [aquelas em que deputados federais, estaduais e vereadores são escolhidos]. Será uma pauta que irei colocar na ordem do dia”, disse ao canal GloboNews.
Voto distrital sob análise
Para explicar o que pode mudar no sistema de votação brasileiro em caso de aprovação do texto e avaliar esse impacto, a IstoÉ entrevistou Otávio Catelano, doutorando em ciência política pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e Tathiana Chicarino, cientista política e professora da Escola de Sociologia e Política de São Paulo.
IstoÉ O que é o voto distrital misto?
Otávio Catelano O “voto distrital misto” é uma proposta de mistura entre os dois modelos de regras eleitorais mais usados no mundo: o modelo proporcional, que o Brasil utiliza para eleger deputados (federais, estaduais e distritais) e vereadores; e o modelo majoritário (ou distrital), que é usado para eleger parlamentares em países como os Estados Unidos e o Reino Unido. Para uma referência mais clara, a eleição de prefeitos, governadores e presidentes no Brasil também segue o modelo majoritário. Na proposta que será debatida na Câmara, parte dos parlamentares seria eleito pelo voto direto e outra parte seria eleita pelo voto nos partidos políticos.
Tathiana Seria necessário analisar a proposta de alteração, mas podemos discutir com base nas experiências já existentes. Quando falamos de voto distrital, o termo “distrital” ou “distrito” é essencial. Trata-se de um voto relacionado ao território, ou seja, ao distrito eleitoral.
Há certa semelhança com o modelo de votação dos Estados Unidos, em que se estabelecem distritos eleitorais. Por exemplo, na cidade de São Paulo: quantos distritos eleitorais existiriam? Quais seriam os critérios de definição de cada distrito? Seriam populacionais? Seriam baseados nas fronteiras entre bairros? Essa seria a primeira questão, pois o voto distrital está diretamente relacionado ao território, e a eleição se daria a partir dele.
IstoÉ Qual é a diferença entre os modelos do voto distrital e do voto distrital misto?
Otávio Catelano O voto distrital pressupõe a divisão do território dos estados em pequenos distritos, sendo cada distrito responsável por eleger um representante. Seria basicamente a regra que usamos para eleger prefeitos, mas aplicada em turno único. Isso gera incentivos diferentes do que os parlamentares brasileiros têm hoje. A ideia é de que o parlamentar tem de ser mais próximo de sua base eleitoral, agradando mais os seus eleitores ao longo do mandato em busca de ser reeleito numa próxima disputa.
Em países que utilizam essa regra, a taxa de reeleição tende a ser mais alta. Além disso, os partidos grandes têm vantagem porque têm mais capilaridade territorial do que partidos menores. Isso poderia gerar um efeito de bola de neve, reduzindo o número de partidos no Brasil de médio a longo prazo.
O voto distrital misto, que é a proposta em discussão, usaria as regras descritas acima para apenas uma parte dos eleitos; ou para essa mesma parte, poderia usar o “distritão”, regra em que o estado seria um único grande distrito e os mais votados seriam eleitos sem necessidade de força partidária. Isso pode incentivar a eleição de figuras polêmicas e defensores de pautas radicais. A outra parte dos eleitos seria escolhida com base nas mesmas regras que utilizamos atualmente.
No modelo que o Brasil usa atualmente para eleger parlamentares, votamos em candidatos (votos nominais) ou em partidos (votos de legenda). As cadeiras são distribuídas proporcionalmente aos partidos de acordo com a quantidade de votos que cada sigla conquistou (somando os votos nominais e de legenda). Os votos nominais servem para elencar os candidatos mais votados dentro de cada partido, e esses candidatos ocupam suas vagas no Legislativo na medida em que o partido tem votos suficientes para conquistar mais cadeiras — ou seja, se o partido obteve votos suficientes para conquistar duas cadeiras, os dois candidatos mais bem votados desse partido serão os eleitos.
Tathiana Pode parecer que todas as eleições são territoriais, mas não é o caso. Na eleição proporcional, que utilizamos para vereadores, deputados estaduais e federais, o voto segue um sistema proporcional. Nesse modelo, elegemos representantes de forma proporcional ao número de votos obtidos pelos partidos, o que é diferente do sistema majoritário.
Na forma majoritária, quem obtém mais votos vence. Já no sistema proporcional, há uma divisão distinta: primeiro, o voto é atribuído ao partido; depois, o eleitor indica qual candidato desse partido gostaria de ver ocupando uma cadeira. As cadeiras são distribuídas de acordo com o desempenho proporcional de cada legenda. Assim, por exemplo, o PL pode eleger um determinado número de vereadores e o PT outro, conforme o cálculo do quociente eleitoral.
No voto distrital, o princípio é outro. Em um bairro como o Butantã, por exemplo, haveria a possibilidade de eleger um número específico de candidatos do próprio distrito. A votação se tornaria mais personalizada, pois o foco estaria no candidato e não no partido, como ocorre no sistema proporcional. Esse modelo se assemelha mais a uma eleição majoritária, como a de presidente da República, em que se ranqueiam os candidatos de acordo com a votação: quem tem mais votos vence, depois o segundo, e assim por diante. No voto proporcional, não é assim; os votos são somados por partido, em listas. No caso do Brasil, a lista é aberta – ou seja, nós, eleitores, é que ranqueamos os candidatos (por exemplo, a vereador). Em outros países, a lista pode ser fechada.
IstoÉ Quais são as vantagens e desvantagens do modelo proposto?
Otávio Catelano Um bom sistema eleitoral aquele em que as regras são facilmente compreendidas pelos eleitores. O sistema proporcional atual parece muito confuso, mas tem uma lógica simples por trás: a distribuição de cadeiras é proporcional à quantidade de votos conquistados por cada partido. Isso poderia ficar mais claro alterando o sistema de uma lista aberta para uma lista fechada, fazendo com que as pessoas tivessem apenas a opção de voto de legenda, e não mais a opção nominal. Ou, se a opção de mudança for mais radical, alterar o sistema proporcional pelo sistema distrital normal, com a ciência de que esse sistema também tem problemas.
A questão é que a alteração proposta apenas torna as regras mais complexas e piora a qualidade da representação política na nossa democracia. Teremos, ao mesmo tempo, deputados “difusos” e deputados “territoriais”, que atuarão com incentivos distintos. Além disso, se for acatada a ideia do “distritão” para premiar os candidatos mais bem votados, o resultado seria ainda pior. Isso pode incentivar o lançamento de puxadores de votos, personalidades polêmicas e lideranças que se agarram a pautas radicais em busca dos votos que serão suficientes para os elegerem sem que precisem construir ideias em grupo por dentro dos partidos políticos.
Tathiana O que se discute em termos de vantagens é que, em tese, as pessoas saberiam quem é o representante daquele distrito ou daquela região. Em termos de vereança, isso já acontece de alguma maneira, pois há tanto o vereador, que é o representante mais direto daquele território, quanto o representante de correntes de pensamento, correntes ideológicas ou que defendem corporações. O benefício apontado seria esse: estabelecer uma maior proximidade entre o eleitor e o representante. No entanto, não existem pesquisas robustas que sustentem que essa proximidade levaria a uma relação de representação democraticamente mais interessante ou mais sólida.
Há exemplos de pequenos municípios em que essa proximidade não resulta em um mandato mais democrático nem mais próximo do eleitor. A principal desvantagem seria a excessiva personalização do voto. Já temos isso no Brasil, e esse efeito poderia se acentuar ainda mais, aproximando-se do modelo de voto majoritário – como ocorre nas eleições para presidente da República, governadores e prefeitos.
Outra consequência seria a perda de poder dos partidos como instituições de mediação entre os interesses dos eleitores e aqueles que estão no parlamento. O voto proporcional é dado ao partido, e não às pessoas, embora muitas vezes se confunda isso ao indicar o candidato preferido. O voto, primeiro, é no partido.
Essa é uma das principais críticas. Há também uma segunda: a baixa renovação política. Como o sistema fica muito articulado ao território, a chance de o partido abrir espaço para novos candidatos é pequena. Isso ocorre em alguns distritos eleitorais nos Estados Unidos, por exemplo. As pessoas que defendem o voto distrital – o que não é o meu caso – argumentam, então, que a solução seria combinar as duas coisas: o voto distrital e o voto proporcional, como temos hoje.