
Fome em massa se espalha por Gaza e ameaça ajuda humanitária
Mais de 100 organizações não governamentais alertam que trabalhadores humanitários também definham, enquanto tentam levar alimentos e ajuda à população de Gaza, que morre de inanição. Israel nega e culpa o Hamas. Brasil adere a ação que acusa genocídio
A última vez que Yazan Ghussen, 17 anos, comeu foi no domingo (20/7). Pagou o equivalente a R$ 300 por um prato de lentilhas. "Não existe comida em Gaza. Estamos enfrentando dias muito difíceis", afirmou ao Correio, por meio da rede social X. "Temos medo de perder nossas crianças, devido à fome. A situação pior a cada dia e nada temos para aliviar isso", acrescentou. Também na plataforma X, os relatos de desespero, quase que pedidos de súplicas, se espalham. "Eu não comi hoje. Só quero comida. Ando um pouco e me sinto tonto — o meu estômago está vazio. Meus filhos estão morrendo lentamente", escreveu Shadi, pai de quatro crianças. "Não como há três dias", afirmou Hazem, que aparece na foto ao lado da filha. "Não tenho vergonha em dizer que sinto fome. A situação é catastrófica, e os preços estão absurdos", desabafou Alaa.
Deputados israelenses votam a favor de chamado à anexação da Cisjordânia
"Cristo está em Gaza": líderes cristãos denunciam destruição e clamam por paz
A fome em massa se alastra pela Faixa de Gaza e começa a definhar até mesmo funcionários de entidades humanitárias que tentam aliviar o sofrimento de mais de 2 milhões de palestinos, advertiu um comunicado assinado por 111 organizações não governamentais, entre elas, a Action Against Hunger (Ação contra a Fome), Anistia Internacional, ActionAid International, CARE, Caritas, Médicos Sem Fronteiras, Oxfam e Save the Children, e divulgado nesta quarta-feira. No mesmo dia, o governo do Brasil anunciou a adesão a uma ação apresentada pela África do Sul junto à Corte Internacional de Justiça, em Haia, na qual acusa o Estado israelense de genocídio.
"Enquanto o cerco do governo israelense mata de fome a população de Gaza, trabalhadores humanitários agora se juntam às mesmas filas por comida, correndo o risco de serem baleados apenas para alimentar suas famílias. Com os suprimentos totalmente esgotados, as organizações humanitárias testemunham seus próprios colegas e parceiros definhando diante de seus olhos", afirma o texto firmado pelas ONGs. De acordo com o comunicado, até 13 de julho, a ONU confirmou que 875 palestinos foram assassinatos enquanto buscavam comida, 201 em rotas de ajuda e 674 em pontos de distribuição de alimentos. O documento destacou citou um trabalhador humanitário que fornece apoio psicossocial aos palestinos e revelou o impacto da fome sobre as crianças. "Elas dizem aos pais que querem ir para o céu, porque pelo menos lá tem comida", contou.
"Não sei de que outra forma se pode descrever o que está acontecendo, senão que há pessoas morrendo de fome em massa", admitiu Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS). O governo de Israel nega as acusações de que seria responsável pela fome em massa e culpa o grupo terrorista Hamas. "Não há uma fome em massa causada por Israel, Trata-se de uma escassez (de alimentos) provocada pelo Hamas", declarou David Mencer, porta-voz do governo de Benjamin Netanyahu. À reportagem, um ex-porta-voz das Forças de Defesa de Israel (IDF) colocou em xeque a credibilidade do comunicado das 111 ONGs. "Você acha essa declaração confiável, imparcial e séria?", questionou. O Ministério da Saúde de Gaza, controlado pelo Hamas, divulgou que 43 crianças morreram de fome desde domingo, 10 somente nesta quarta-feira (23).
Chefe do Escritório de Direitos Humanos da ONU nos Territórios Palestinos Ocupados, Ajith Sunghay disse ao Correio que as Nações Unidas vinham alertando sobre o risco de fome em massa na Faixa de Gaza. "A fome adquiriu um teor catastrófico. Apesar de existir há algum tempo em Gaza, ela atingiu um outro nível. Temos escutado relatos de pessoas caindo nas ruas, porque não têm mais energia, e morrendo por causa da inanição e da falta de cuidados médicos", afirmou. "Temos visto pessoas fisicamente desnutridas, apenas pele e ossos. Não há mais carne em alguns corpos. Há pessoas que se parecem mais novas do que realmente são, atingidas por um atraso de crescimento."
Sunghay advertiu que cada vez mais palestinos morrerão, caso não haja um cessar-fogo. "A trégua, provavelmente, será temporária. O que precisamos é o completo fim desta guerra, para que a ajuda humanitária 'inunde' a Faixa de Gaza. Não apenas comida, mas também medicamentos, porque aqueles que estão desnutridos ou famintos não se recuperarão sem os recursos médicos adequados", comentou.
Ele lembrou que, apesar de a fome ser manchete em vários jornais do mundo, os bombardeios prosseguem. "Pessoas que tentam obter qualquer porção de comida estão sendo mortas por disparos. Palestinos estão morrendo, acometidos por doenças. É uma situação além de catastrófica. No meio disso tudo, as Forças de Defesa de Israel (IDF) pedem aos civis que se desloquem de uma região para outra. Você pode imaginar o quão cansadas, exaustas e frustradas estão essas pessoas. É algo doloroso", lamentou Sunghay.
EU ACHO...
Ajith Sunghay, chefe do Escritório de Direitos Humanos da ONU nos Territórios Palestinos Ocupados(foto: Arquivo pessoal )
"O que Gaza enfrenta hoje é além de catastrófico. O que vemos é uma crise de humanidade. O que pode ser feito? Tenho repetido isso várias vezes. Há países-membros da ONU neste planeta. Onde estão o Conselho de Segurança, a Assembleia Geral da ONU? Os países-membros têm que começar a tomar medidas conjuntas, dentro dos respectivos fóruns, ou bilateralmente. Todos eles têm relações com Israel. Eles precisam colocar mais pressão."
Ajith Sunghay, chefe do Escritório de Direitos Humanos da ONU nos Territórios Palestinos Ocupados
Brasil adere ao processo contra Israel por genocídio
O governo brasileiro anunciou a entrada formal no processo em curso na Corte Internacional de Justiça, em Haia (Holanda), movido pela África do Sul, com base na Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio. "A decisão fundamenta-se no dever dos Estados de cumprir com suas obrigações de direito internacional e direito internacional humanitário frente à plausibilidade de que os direitos dos palestinos de proteção contra atos de genocídio estejam sendo irreversivelmente prejudicados, conforme conclusão da Corte Internacional de Justiça, em medidas cautelares anunciadas em 2024", afirma um comunicado do Ministério das Relações Exteriores brasileiro. Embaixador palestino no Brasil, Ibrahim Alzeben disse ao Correio receber com "profundo respeito e admiração" a decisãodo Brasil. "É um gesto firme, corajoso e alinhado com a tradição do Brasil na defesa dos direitos humanos e do direito internacional."
Ao longo de seu mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva subiu o tom em relação a Israel. Em dezembro de 2023, Lula afirmou que "o que está está acontecendo em Gaza não é uma guerra, é praticamente um genocídio". Em julho de 2024, ele acusou Israel de sabotar o processo de paz e o cessar-fogo no Oriente Médio. "É estarrecedor que continuem punindo coletivamente o povo palestino. Já são dezenas de milhares de mortos em seguidos ataques desde o ano passado, muitos deles em zonas humanitárias delimitadas", escreveu na rede social X.
Na nota desta quarta-feira (23), o Itamaraty expressou "profunda indignação diante dos recorrentes episódios de violência contra a população civil" no Estado da Palestina. "A comunidade internacional segue testemunhando, de forma rotineira, graves violações de direitos Humanos e humanitário: ataques à infraestrutura civil, inclusive a sítios religiosos, como à paróquia católica em Gaza, e às instalações das Nações Unidas, como à Organização Mundial da Saúde; violência indiscriminada e vandalismo por colonos extremistas na Cisjordânia, como o incêndio às ruínas da antiga Igreja de São Jorge e ao cemitério bizantino em Taybeh; massacres de civis, a maior parte dos quais mulheres e crianças, que se tornaram cotidianos durante a entrega de ajuda humanitária em Gaza; e a utilização despudorada da fome como arma de guerra", afirma.
De acordo com o comunicado, a esses horrores somam-se "contínuas violações do direito internacional, como a anexação de territórios pela força e a expansão de assentamentos ilegais". "A comunidade internacional não pode permanecer inerte diante das atrocidades em curso. O Brasil considera que não há espaço para ambiguidade moral nem omissão política. A impunidade mina a legalidade internacional e compromete a credibilidade do sistema multilateral", adverte. (RC)